Opinião

O tom bonito das palavras

21 de julho de 2025

Foto: Reprodução

Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho

Vivemos um tempo em que muita gente escreve difícil para parecer inteligente. É como se palavras complexas fossem sinônimo de sabedoria — quando, na verdade, a grandeza da linguagem está justamente em sua simplicidade. Quem fala bonito de verdade é quem consegue ser claro. Quem escreve bem é quem toca, não quem confunde. Palavra boa não precisa gritar: basta dizer com sentido.
Com o tempo, a gente percebe: algumas palavras têm um tom bonito. Não falo de firulas nem de vocabulário empinado. Falo de ritmo, cadência, jeito. Há palavras que dançam. Outras tropeçam. Algumas deslizam feito água limpa num leito de pedra. Outras arranham como giz em lousa seca.
Rubem Braga sabia disso como poucos. Era mestre na arte de fazer a frase respirar. Não precisava levantar a voz. Uma sentença curta dele — “é odioso”, por exemplo — dizia mais do que tratados. Dominava o silêncio das entrelinhas com a mesma precisão com que um violonista sustenta as pausas entre os acordes. Braga não escrevia para impressionar. Escrevia para tocar.
Carlos Heitor Cony também. Dono de um estilo enxuto, elegante, cheio de recato. Preferia o “é sacal”, seco, direto, sem afetação. Sabia dosar as palavras com a contenção de quem respeita o leitor e a língua. E, mesmo quando ironizava, era com sobriedade. Porque Cony, como Braga, fazia da crônica um lugar de acolhimento — um recanto de sombra num país acostumado ao sol a pino.
Aliás, “sacal” vem mesmo de “é um saco”. Mas ele soube dar-lhe um ar de crítica contida, de enfado sem escândalo. Um tédio com classe. E isso, para mim, é um feito extraordinário: transformar uma expressão corriqueira num gesto literário.
Esses cronistas eram operários da palavra — mas daqueles que lidam com o que há de mais sutil: a sonoridade da fala brasileira. Não caíam na tentação do adorno. Gostavam do que soava verdadeiro, mesmo que imperfeito aos ouvidos exigentes de certos gramáticos. Tinham ouvido absoluto para a música da língua.
Outro dia, refletindo sobre construções como “durante esta semana”, percebi o quanto somos guiados não apenas pela gramática, mas pelo ouvido. A frase está correta, sim, mas soa truncada. Não serve para colo de rede — talvez para procedimento jurídico. Por isso a musicalidade importa. Um texto não se impõe: convida. E, quando convida com leveza, o leitor aceita. Entra, senta, fica.
Foi então que me veio à mente uma imagem terna: Cony passeando à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas com Mila, sua setter irlandesa. Caminhavam os dois — ele, de silêncio elegante; ela, de passos graciosos. A cena parecia uma crônica andando. Havia poesia natural naquele homem de paletó leve e naquela cadela de pelagem ruiva, como se ambos pertencessem à mesma oração.
Também tive um setter, de saudosa memória. Chamava-se Koriaq.
Era um desses cães moldados pelo vento. Magro, elegante, com aquele jeito de caminhar sem fazer barulho. A pelagem longa, castanha-avermelhada, brilhava ao sol como cobre polido — por isso o chamavam de cão vermelho. Mas o vermelho dele era mais do que cor: era calor. Um calor manso, silencioso, que abraçava sem precisar se encostar.
Gostava de passear na Praça Centenário, em Passos, exibindo sua beleza avermelhada como quem desfila. Quando o elogiavam — e elogiavam muito — ele se esticava todo, vaidoso e feliz, como se compreendesse cada palavra e a guardasse no coração.
Koriaq era assim: todo feito de delicadeza. Tinha gestos lentos, um olhar que dizia tudo sem dizer nada.
Ele me ensinou o valor do silêncio — não o que cala por medo, mas o que acolhe. O mesmo silêncio que mora nas entrelinhas e nos grandes afetos.
A beleza da palavra repousa no que não se mostra. Nos intervalos. No que não se diz, mas se deixa ouvir, feito assobio baixinho que só escuta quem presta atenção. E há dias em que tudo o que a gente precisa é justamente disso: de alguém que nos fale bonito, mesmo sem dizer muita coisa.
Quem sabe o silêncio diga o que as palavras não alcançam?

                    Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho é advogado e cronista. (luizgfnegrinho@gmail.com)