26 de junho de 2025
Alberto Calixto Mattar Filho
Já manifestei em textos pretéritos a minha relação com Roberto Drummond. Claro, os laços entre leitor e escritor, essa aliança fundamental para quem escreve e para quem lê. Em um texto de julho de 2021, “As crônicas esportivas de Roberto Drummond”, expus como o conheci.
Foi em anos bem anteriores. Eu estava entre o fim da infância e início da adolescência, com 11 ou 12 anos, quando comecei a ler e a me empolgar com as crônicas esportivas que ele publicava no “Estado de Minas”.
Tudo ocorria na antiga sala de leituras do Passos Clube, onde eu já me dedicava aos jornais, algo que herdei do velho Beto, leitor voraz do “Estadão”. Ali eram oferecidos “O Globo”, “O Jornal do Brasil”, “O Jornal dos Esportes”, “O Diário da Tarde”, “Estado de Minas”, “O Jornal de Minas”, “O Estado de São Paulo” e o “Diário de São Paulo”.
Gloriosos anos 70, época de ouro do futebol brasileiro pós tri no México. Aliás, minha identificação com Roberto Drummond ainda possuía um elo indestrutível, a paixão pelo Galo, que ele sempre assumiu.
E ninguém a expressou tão bem: “Se houver uma camisa preta e branca no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento.”
Desde então, sentia-me em falta com os seus romances. Sim, esse universo de infinita riqueza da literatura sempre nos deixará em falta com este ou aquele escritor, esta ou aquela obra. Mas o resgate poderá vir, mesmo que tardio.
“Hilda Furacão”, a obra de maior relevo que escreveu, está comigo há mais de uma década e, em cumprimento ao desígnio, bastaram as primeiras páginas há algumas semanas para que o envolvimento fosse pleno.
Creio que muitos devem se lembrar de que tal obra se transformou em minissérie da “Globo” tempos atrás. Não cheguei, todavia, a acompanhar a transmissão. A leitura sempre foi a minha preferência.
Pois me sinto à vontade para dizer agora que “Hilda Furacão” é um romance extraordinário. Em 298 páginas, além de construir um ótimo enredo e capturar a atenção, Drummond se desincumbe, com talento, de uma das maiores características da literatura, a simbiose entre os panoramas ou valores de época e a natureza humana.
Embora em circunstâncias já passadas, ali também estão sentimentos que sempre costumamos nutrir em relação em relação ao amor, às paixões, ao prazer, às angústias, aos anseios e aos poderes em quaisquer instantes da existência.
Entre o final da década de 50 e até um pouco após o golpe de 1964, somos, pois, convidados a dar um passeio por Belo Horizonte e por uma pequena cidade do interior de Minas chamada Santana dos Ferros, hoje, Ferros, ambos os locais onde se passa grande parte do relato.
Sabe-se que a mulher Hilda, de fato, existiu, e teria sido uma famosa prostituta da zona boêmia da capital mineira daqueles anos, mas, no texto, foi mitificada e mistificada para dar contornos ao romance, que veio em 1991.
Assim, a imaginação do autor a transfigura em moça de tradicional família mineira que deixa as piscinas do Minas Tênis Clube para se tornar a prostituta que enlouquece os homens em um bordel no centro de Belo Horizonte, com filas que dobravam as esquinas. Entorpecia-os de tal modo que não lhe faltavam propostas de casamento, com fartura de bens e dinheiro.
Nesse contexto, há os outros protagonistas, o próprio Roberto Drummond, um jornalista em início de carreira, que se torna grande amigo de Hilda em nome das reportagens que realizava, e os outros dois, o frei Malthus, um religioso, e Aramel, um belo rapaz que gostaria de ser estrela de Hollywood.
Assim, em meio aos delírios provocados por Hilda Furacão, aparecem os imbróglios paralelos dos três, Roberto, Malthus e Aramel, com várias circunstâncias tanto na capital, quanto em Santana dos Ferros, onde viveram inicialmente antes de debandarem para Belo Horizonte em busca de estudos e carreira.
Em todos os capítulos, o autor Roberto, que narra a própria trajetória, nesse misto de ficção e realidade, vai nos deixando reféns do que está por vir, ora ao abordar Hilda, ora transmitindo os caminhos tanto de si, quanto dos outros dois parceiros, mas sem jamais abandonar a aliança entre o mistério e as fortes doses de humor.
Surgem, portanto, no transcurso, grandes nomes do jornalismo e da política entre aquelas décadas de 50 e 60, todos envoltos nos encantos provocados por Hilda e nas tramas preparatórias dos militares para o golpe de 1964.
Sem aderir a obscenidades, um romance, que, sob ritmo intenso, revela a capacidade de Drummond em arquitetar os vínculos dos personagens com o que então ocorria na realidade de Belo Horizonte e do Brasil daquele momento.
“Hilda Furacão”, entre a força da prostituição e as questões religiosas, entre os amores e os círculos dos poderes, entre as ideologias políticas e suas consequências, entre esperanças e frustrações, é um livro que nos toma do início ao fim.
Alberto Calixto Mattar Filho é autor de dois livros de resenhas literárias, Livros, com 50 textos, e Livros, volume 2, com 60 textos, e escreve quinzenalmente às quintas nesta coluna. (mattaralberto@terra.com.br)