Opinião

Competência normativa

16 de setembro de 2024

foto: REPRODUÇÃO

LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO

O devido respeito a Ives Gandra da Silva Martins, figura das mais notáveis da República. O mestre do Direito, como personalidade humana e jurídica, merecidamente, coleciona títulos de várias partes do mundo.

Todavia, a esperança de que a “Pacificação Nacional” deva estender-se aos baderneiros de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes, em Brasília, me parece injustificável. (Ives Gandra, “Pacificação Nacional”, Folha da Manhã, 11/09, Opinião, pág. 03).

Critério e avaliações chegam a pensar em premissas despropositadas. Fosse assim, paz, saúde, misericórdia e anistia aos infratores da lei – tantos e quantos – incluindo Marcola, Fernandinho Beira-Mar e demais outros narcotraficantes e líderes de organizações criminosas. Não percamos de vista que os ataques (ou atos golpistas) de 8 de janeiro de 2023 foram reais e merecem severa punição dentro da lei e da ordem.

A intenção do mestre do Direito, no conjunto de seus ideais, é a absolvição dos condenados, ou mesmo a revisão das penas impostas pelo Supremo Tribunal Federal, no seu entender, tem correlação e afinidade jurídica com a absolvição política de Lula no que diz respeito ao foro de competência. Data vênia, nada a ver. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Longe de querer projetar-se em defesa de Lula quando de sua absolvição, a verdade é que ficou amplamente comprovado que o presidente Lula foi julgado sem provas pelo ex-juiz, hoje senador, Sergio Moro (União Brasil, PR). Ainda que, mansa e pacificamente, se leve a interpretar a questão da mudança de foro de competência, não se pode de forma alguma vincular a suposta “descondenação” de Lula pelo STF no sentido de resgatar a figura do presidente Lula com o fito de reconduzi-lo à política. Lula cumpriu 580 dias de prisão, após ações arquivadas, denúncias rejeitadas e absolvições, em seguida disputou a presidência, chegando ao terceiro mandato.

Quando aventou a hipótese da Pacificação Nacional, o eminente Ives Gandra inspirou-se no ex-presidente Juscelino Kubitschek, que, em determinado episódio histórico, “anistiou os revoltosos de Aragarças e Jacareacanga, tendo-os perdoado, num gesto de monumental grandeza”.

A pergunta que se faz é se o conflito é de natureza jurídica ou política. Assentado nessa tese está a imagem de que não se pode jamais aventar a hipótese de golpe de Estado, porque não havia armas. É o que diz. Até hoje, especialistas tentam entender o fatídico dia. E aconteceu: barbárie, agressões, desrespeito, ataques que entraram para a história, impetrados por cerca de cinco mil manifestantes bolsonaristas, que entraram com confronto com a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).

Pelo que se percebe do objetivo do emérito professor de Direito, é a tese de que se poderia pacificar o país e buscar o consenso de que a ordem pode ser restabelecida a partir do respeito ao exercício dos direitos sociais e individuais, resguardando-se os valores supremos de uma sociedade justa, fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Contra a polarização política irracional que dela não se pode perder de vista? Manifestantes quebraram vidraças, móveis, obras de arte, atearam fogo no plenário do STF, vandalizaram as instalações do Congresso, riram, debocharam e se divertiram a valer, comemorando a destruição…  E se fica nisso e por isso mesmo?

Forças da direita radical entendem a posição do renomado jurista brasileiro como ato de bravura intelectual e jurídica. Até acham justificável. Ives Gandra, uma bandeira personificada do posicionamento político-ideológico e não apenas corrente do pensamento crítico de um jurista e humanista voltado ao fortalecimento da paz. Talvez resida aí a controvérsia do grande processo de pacificação para, no mínimo, tentar reduzir essa radicalização que não faz sentido e tampouco bem à nação. É a estupidez cósmica.

O Direito positivo atende à multiplicidade de entendimentos, na observância da ordem, liberdade e democracia, sem que com isso se oponha sistematicamente à posição dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal (TST). Ives Gandra faz questão de dizer: “Muito embora nem sempre concorde com seus posicionamentos, mantenho com eles [ministros] a mais fina e tranquila cordialidade”.

Tudo bem que assim seja. Não obstante, as posições bombásticas, como essa da Pacificação Nacional, do ponto de vista jurídico, o manifestante não deixa de rasgar elogios ao atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso e ao paradoxal ministro e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes. Apesar de tudo, o diálogo continua sendo a marca registrada e o alimento indispensável para a manutenção do respeito e da ordem, o que não deixa de ser um contraponto à matéria da Pacificação Nacional.

Revisar processos e pedir a absolvição, um direito. Anistiar o que fizeram, à luz terrificante dos acontecimentos, jamais! Cada um que pague e se responsabilize pelos seus atos. Rastro de destruição pelos ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília, com consequências desastrosas pelos ataques antidemocráticos.

Por último, o questionamento: seria Ives Gandra Martins o mentor intelectual e teórico do golpe de Estado, em face da distorcida tese de que a Constituição “permitiria uma intervenção militar em caso de crise dos Três Poderes?”.

LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO, advogado, escreve aos domingos nesta coluna. (luizgfnegrinho@gmail.com)