20 de janeiro de 2024
Então é janeiro
O tempo já vai longe. Só a saudade é bem recente. Uma casinha de duas janelas cheirando a madeira molhada, da recente chuva.
Janeiro já com gosto de férias, de brincadeiras. Na casa pequenina para cinco filhos, o homem acorda com os primeiros raios da manhã a entrar pelo telhado barroco e se encaminha para a minúscula cozinha para acender o fogo. A lenha no canto da janela é pouca, a mulher logo dirá que novos galhos serão necessários. A pequena e frágil janela é aberta por uma tramela cujo prego já cansado ameaça abandonar o posto de guardião da casa.
O homem torce o bigode e sente o cheiro do café já fumegando no coador de pano. Hoje só o café. Desacompanhado de pão. Amanhã quem sabe…
Coração inquieto espia o pequeno terreiro onde as crianças gostam de brincar. Buracos desalinhados do jogo de bolinhas, um pé de chinelos arrebentado esquecido na terra. Uma boneca sem calcinha dentro de uma pequena bacia, certamente à espera de um banho. Dois carrinhos faltando rodinhas e precisando serem consertados na pequena oficina imaginária do filho caçula.
O homem se afasta da janela, pois a vida não carece de ficar parado. Se não trabalhar, não há o que comer. Calça o vulcabrás cambeta e de sola gasta e chama a mulher para se despedir. Talvez não venha almoçar. A “praça” está ruim. É época de pagar a prestação da casa pequenina, mas agora lhe pertencendo. Uma sala pequena, uma minúscula cozinha e dois quartos. Num deles dormem os cinco filhos.
Precisa dar um jeito de separar as meninas. A maior já está mocinha.
Só Deus sabe do sufoco para ter o Ford 47 na “praça”. O carro já pedindo o conserto que ele mesmo fazia. As velas sofrem com a chuvarada. Ao desmontá-lo ele mesmo faz os reparos copiando peças danificadas num pedaço de papelão que outrora foi caixa de sapatos. Infelizmente não é hora de comprar ruelas novas. Ele mesmo é o mecânico para todos os consertos necessários.
A mulher toma o café e lhe comunica mais uma vez a necessidade de um novo quarto na casa. Finge não escutar e segue seu caminho na jornada que lhe foi confiada pelo Mestre Maior.
Na “praça” não está só. Há outros companheiros tão preocupados quanto ele.
Mas consegue se encher de alegria e coragem ao entrar na Igreja Matriz para uma prece junto ao Senhor Bom Jesus dos Passos. A Ele confia todas as suas alegrias e também a imensa comitiva de preocupações que carrega em sua alma. Silencia o pensamento para ouvir as respostas do Senhor. A igreja é bela e nas imagens pode encontrar socorro para suas aflições.
Muitos anjos correm ao seu ouvido para cochicharem as respostas aos seus desassossegos espirituais. Procura pelo Anjinho Negro que é sempre o mais atrevido e que vem se sentar em seu ombro. Lá está ele cochilando em sua perna. Ao passar a mão em seus caracóis ele desperta e lhe dá um sorriso. Sua alma se enche de paz e alegria. Deu-lhe o nome de Antoninho.
Levanta os olhos para o teto e fica a admirar a obra feita por seu tio Jerônimo Neto. Gostaria muito de tê-lo conhecido.
Despede-se com um aceno prometendo voltar no dia seguinte.
As horas vão passando e não volta à casa para o almoço. Melhor assim.
Não gasta gasolina à toa. Na frescura das árvores e no cantar dos passarinhos arrasta um tamborete para almoçar um pedaço de queijo mineiro, “Serra da Canastra” que ganhou de uma freguesa e vizinha moradora em frente ao “ponto”.
À tarde finalmente o telefone toca. Uma corrida para salvar o dia, ele pensa.
Mas é para ir à casa. A esposa o espera com urgência.
Em casa, encontra o filho com os olhos em prantos e a esposa desesperada.
Na Santa Casa de Misericórdia médicos fazem o diagnóstico: língua partida de ponta a ponta. Anestesia geral.
Lembra-se então de “Antoninho” e da Virgem Maria. Entrega suas preces e a língua partida. No final recebe uma língua costurada com 15 pontos e um filho que agora ficará alguns dias de repouso e sem tagarelar ou fazer artes.
Silvia Helena Reis