21 de novembro de 2023
Prof. Dr. Leandro Rocha
Izadora Andrade
Se observarmos uma formiga no Brasil, uma na China e uma formiga na Alemanha, as três estarão fazendo os mesmos procedimentos. Há variações entre espécies, bem como, em se tratando de quais as possibilidades de alimento no local, ou de material para o ninho. Contudo, não haverá distinções comportamentais se forem da mesma espécie e com os mesmos insumos disponíveis, não haverá distinções em decorrência do país na qual se encontram, que é uma delimitação política humana.
Quando observamos a modernidade técnica, o mesmo ocorre. Os celulares, por exemplo, funcionam do mesmo modo globalmente, assim como os carros. Um mesmo modelo de carro precisa de um mesmo modo de conserto do mesmo problema (mesma técnica e mesma peça) independente do país no qual quebre.
Se observarmos os seres humanos, bem como a política, tais fatores possuem especificidades locais, regionais, sentidos marcadamente diferentes. Por exemplo, apesar de os seres humanos estarem todos a se alimentar, o sentido com o qual se alimentam depende do contexto, da companhia, do dia…
Um jantar a luz de velas ou um jantar rápido com macarrão instantâneo, ou as tentativas de dieta, são experiências ainda mais singulares do que se poderia dizer com a palavra “local”, podem estar acontecendo de modos diversos ao mesmo tempo no mesmo restaurante, ou, ainda, no mesmo prédio, com sentidos distintos. Depende do contexto, dos significados culturais e afetivos.
Com relação a política, algo similar ocorre. Apesar de, como nos lembra a filósofa Nancy Fraser, a globalização tornar a ideia de Estado soberano cada vez mais relativa (pois os problemas e as implicações têm se apresentado cada vez mais globais), o que funciona politicamente em uma cidade não funciona necessariamente do mesmo modo em outra, ou, ainda, em países distintos.
Uma coisa é a racionalidade técnica, planificada, em uma mesma direção, que nos lembra o modo como as formigas trabalham do mesmo modo independente do país e, ainda, trabalham sem se questionarem sobre os motivos pelos quais fazem o que fazem. Outra, é a esfera humana dos significados culturais e da política, na qual temos o cenário privilegiado dos motivos pelos quais fazemos o que fazemos.
Nesse sentido, autores como Marcuse nos alertam sobre os riscos de confundirmos as coisas, de trocarmos a racionalidade política pela racionalidade técnica. A técnica tem potencial para nos possibilitar conquistas grandiosas, como a resolução dos problemas da humanidade. Contudo, a direção na qual ela é empregada não passa sempre pela esfera da política, pelo debate livre e público e, com alguma frequência, o que vemos é a técnica a serviço de interesses questionáveis do ponto de vista do âmbito público e democrático.
Heidegger entende a técnica como um desocultar algo que está oculto, um descobrir algo que está coberto, ou, ainda, um produzir. Produzir vem do termo “pro”, que significa “à frente”, e “ducere”, que é guiar, conduzir, do mesmo termo que vem as palavras aqueduto, viaduto, ducha, ou seja, sempre no sentido de algo a guiar, a conduzir.
Desse modo, produzir é trazer à tona, trazer à frente, mas trazer o que? Trazer aquilo que já está ali. Aquilo que a natureza já permite. Mesmo na produção da bomba atômica, os cientistas apenas produziram o que a natureza possibilitava que fosse produzido. Nesse caso, o próprio cientista é o instrumento, e não um criador.
A ciência obedece a regras, algumas coisas não são possíveis de serem produzidas independentemente da imaginação ou da vontade. Mas aquilo que a natureza possibilita produção, possibilita esse descobrir, o modo moderno de racionalidade pouco questiona se deve ser descoberto, se deve ser fabricado. Se algo tecnicamente é factível, dispensa-se do debate. E é essa racionalidade técnica que está tomando conta da política.
A esfera do debate de argumentos está sendo reduzida a soluções técnicas, como se a ciência, a técnica e a tecnologia não estivessem relacionadas a valores ou a influências, como se fossem neutras e objetivas. Os financiamentos de pesquisas, a venda das descobertas, o consumo, os jogos de poder e muitos outros interesses estão a acompanhar a ciência, a técnica e a tecnologia, deixando a população carente de uma formação científica mínima para poder questionar os rumos da técnica, a ponto de confundirmos os progressos técnicos com o progresso da humanidade, num reducionismo de nossa humanidade.
Nisso também está inclusa as nossas demandas criadas cotidianamente, a nos impelir a agregarmos cada vez mais itens no grupo de produtos indispensáveis à nossa sobrevivência, nos ocupando em nosso papel de consumidores passivos, escolhendo entre opções de rótulos e vendo nisso um espantalho de liberdade, enquanto somos dependentes cada vez mais de produtos que a pouco tempo atrás nem sabíamos que existiam e que agora não imaginamos mais a nossa vida sem eles.
O que nos resta fazer?
Poeticamente, Angelus Silesius, no século XVII nos diz: “a rosa é sem porquê, ela floresce como floresce. Ela não se importa consigo, não pergunta se alguém a vê”. A rosa, assim como a formiga, assim como o motor do carro, não se pergunta pelos motivos a partir dos quais faz o que faz.
Já nós, seres humanos, não estamos no mesmo barco que a rosa e o motor. Fazemos o que fazemos por alguma razão. Tomamos decisões por alguma razão. Que possamos colocar em debate essas razões, que possamos fazê-lo com bons argumentos, livres e esclarecidos.
LEANDRO ROCHA é Doutor em Filosofia pela UFSC, professor de Filosofia e Ética na UEMG/Passos.
IZADORA ANDRADE é acadêmica no curso de Direito do Centro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves.