2 de outubro de 2023
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho
Antes de qualquer análise de cunho sociológico, o correto é deixar evidente que atravessamos uma crise sem precedentes no campo da ética e da moral. E não se trata de uma guerra fria. À maneira baiana, haja pimenta com fartura nos calibres dos interesses pessoais. O fenômeno suplanta o imprescindível interesse coletivo.
Na linha não imaginária do ter em relação ao ser, o homem continua sendo a besta-fera de si mesmo ao deixar se arrastar pela errônea tese de que os princípios basilares que norteiam a boa convivência social devem ceder espaço às falsas premissas de que o importante é ganhar, não importa como.
Em tempo inóspito de inversão de valores, e não há como negar esse registro, o que ocorre nos meios e parâmetros entre os mais diferentes grupos, nos obriga a refletir seriamente na angústia do homem em desfavor do próprio homem.
Será mesmo que os fins justificam os meios, ou, ao contrário, os meios justificam os fins, concepção atribuída a Nicolau Maquiavel (Florença, 1469-1527), quando da publicação da obra “O Príncipe”, na renascença, renascimento ou renascentismo, época de importantes mudanças na Europa, especialmente no tocante às artes, filosofia e ciência, fim do século XIV e início do século XVII, segundo relatos cronológicos não tão consagrados assim?
Tal expressão em verdade não consta literalmente na tese elaborada por Maquiavel, embora, sem nenhum pejo, os capítulos do livro, escrito por volta de 1505/1513, tratem da arte de governar seja para o bem ou para o mal, utilizando-se não raro de meios pecaminosos e ilícitos. O objetivo a ser atingido é o que importa.
A obra de Maquiavel, ou Machiavelli, nos impulsiona aos aconselhamentos ao tirano para fim de manutenção no poder, seja através de leis normativas, ou, noutra vertente, pela força bruta. Daí, possivelmente, numa conclusão natural, tenha surgido a tão famosa e terrível expressão “o fim justifica os meios”.
‘En passant’, por contundentes estudos, não se vislumbra tanta diferença assim no estilo de política praticado no Brasil de hoje.
Entre conspirações e mentiras, tapeações, propagandas enganosas atreladas a ardilosas traições, tudo se volta para o mundo dos interesses pessoais e de grupelhos, em desfavor das classes menos favorecidas pela sorte. Leiamos aqui, bem a propósito, a sociedade como um todo, o povo em geral. Os discursos e os métodos são os mesmos.
Os principados continuam e continuarão existindo nas mais diferentes formas e sedes. Qualquer semelhança não é mera coincidência. O maquiavelismo, assim ficou conhecido o ‘tratado político’ de “O Príncipe”, é fato histórico inquietante e incontroverso. O homem não apenas gosta de ser a evidência na loucura por si só. Este ser incontrolável e devorador de paixões.
Tem ligação direta com a ânsia na arte de governar e mandar, seja através de uma guerra civil urdida e vivenciada no seio de uma sociedade considerada como organizada ou, o que é pior, dentro dele próprio – o homem.
No imperativo da sorte, os fins jamais podem justificar os meios. Mas o que assistimos e vemos por aí, bem à nossa frente, sem que nos esbocemos condigna reação, a contragosto para muitos, é o maquiavelismo exacerbado. Nada de velado, nada de disfarçado ou escondido. Tudo muito claro, como a luz do sol em radiante verão, ainda que em meio às trevas das impropriedades e contradições históricas. Essa inversão de valores não apenas cheira mal. É um mal no escoadouro de um esgoto a céu aberto.
Em vez de poder de mando e comando, melhor seria a aplicação e uso do poder de modos na condução e canalização para o bem. É o respeitar-se, o guiar-se na querença da reciprocidade. É bíblico, em Mateus, 7:12: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que ele lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas”. Noutra roupagem, mais claramente, o mestre Jesus disse: “Nunca façam para os outros o que vocês não gostariam que fizessem para vocês”.
Ao objetivarmos a paz, comecemos por neutralizar a guerra existente dentro de cada um de nós. Na matemática da vida, todos sairiam ganhando justificadamente, sem ninguém e nenhum principado para atrapalhar o estilo de vida de quem quer que seja.
Utopia? Pode ser. Mas comecemos por acreditar na possibilidade. Dicionarizado está. Possibilidade: “condição do que é possível”. E fiquemos assim. Acreditando. Fé!
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho, advogado, escreve aos domingos nesta coluna. (luizgfegrinho@gmail.com)