30 de setembro de 2023
MARCEL VAN HATTEM
Muito se fala sobre a “defesa da democracia”, mas poucos são aqueles que conceituam com clareza o que é democracia. Em primeiro lugar porque há ampla ignorância sobre o que é, de fato, democracia – um termo consagrado na Ciência Política e cujas implicações vão muito além da etimologia de “governo do povo” a partir das palavras gregas kracia e demo, respectivamente.
Em segundo lugar, e em decorrência do motivo anterior, porque há divergências absolutamente legítimas na própria Ciência Política sobre o que define, de fato, uma democracia. Houve até mesmo pesquisador que criasse um novo termo para tentar resolver o problema dos diferentes níveis de democratização entre os países, como foi o caso de Robert Dahl ao instituir o famoso conceito de poliarquia. A multiplicidade de interpretações, portanto, leva muitos a terem dificuldade de bem definir o que é e o que não é uma democracia.
O tripé que orienta a definição mais básica de democracia é aquele que a adjetiva de constitucional, liberal e representativa. Ou seja: democracia como a forma de governo em que o império é da lei, não dos homens; em que as garantias fundamentais e liberdades individuais da cidadania são asseguradas; e em que um corpo político eleito representa a população como um todo.
Mas há aqueles que, em terceiro lugar, não querem conceituar a palavra na sua acepção correta, mas abusam dela para seus fins escusos contrários aos seus próprios fins. Os abusadores podem até não saber exatamente o que é democracia (mas em geral, sim, têm conhecimento para tanto), mas sabem muito bem o que é uma ditadura e como se portam os ditadores – não raro, são eles próprios tiranos. Um bom exemplo é a República Democrática e Popular da Coreia, nem popular nem democrática, ditadura comunista mais fechada do mundo liderada pela mesma família no poder desde 1948.
No Brasil, marcado ao longo de sua história por ter vivido mais períodos autocráticos do que de democracia plena, mesmo considerado apenas o período desde a Proclamação da República, em 1889, também parece se aplicar o conceito de “democracia relativa”, termo usado pelo atual mandatário Lula da Silva quando perguntado sobre o regime atualmente vigente na Venezuela.
As restrições de liberdades, abusos de autoridades e defesas abertas de instrumentos de exceção para a “defesa da democracia” feita por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), por deputados e senadores governistas, pelo Poder Executivo, e defendidas por setores consideráveis da imprensa, academia e opinião pública brasileira, revelam quanto a palavra democracia vem sofrendo abuso no Brasil. Não só a palavra, aliás: a própria democracia brasileira está sob constante ataque de quem diz defendê-la.
Quando ouço que medidas abusivas e inconstitucionais precisavam ser tomadas em nome da “sobrevivência do sistema democrático” durante o governo Bolsonaro, durante o processo eleitoral ou mesmo agora com a volta ao poder de um condenado em várias instâncias da Justiça brasileira a nove anos de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, pergunto-me: a que “sistema democrático” estão os abusadores a se referir?
Seria esse “sistema democrático brasileiro” aquele em que a impunidade dos poderosos prevalece sobre o combate à corrupção? Em que a captura do orçamento para interesses eleitorais, pessoais e sindicais sobrepõe-se ao interesse coletivo? Em que indicações políticas do Centrão no Poder Executivo, para Cortes Judiciais e agências reguladoras são a regra para a perpetuação do famigerado patrimonialismo e clientelismo tão brasileiros? E o financiamento de imprensa com recursos públicos em vez da manutenção da mídia livre de interesses políticos por meio do apoio de assinantes e anunciantes?
Mais: requer a nossa “democracia” brasileira o aprofundamento da injustiça por meio dos conflitos de interesses ao permitir que magistrados julguem casos em que a defesa é feita por escritórios de advocacia comandados por familiares de ministros das cortes superiores? E a iniciativa privada, na nossa “democracia” precisa ser induzida por campeões nacionais escolhidos a dedo pelo Estado para recebimento de créditos subsidiados e incentivos fiscais enquanto a burocracia escorchante e altos impostos matam na casca o empreendedorismo do mais pobre? Nosso “sistema democrático” tão ameaçado requer que sindicatos sejam mantidos pela força da lei com imposto sindical e movimentos criminosos como o MST merecem nosso aplauso, enquanto escravizam os mais pobres às suas vontades e privilégios?
Pois, então: sob o mantra de “defesa do sistema democrático brasileiro”, abusadores da democracia perseguem quem tem sido vocal na manifestação contra o status quo, contra “este” sistema que, em larga medida, atenta contra a própria democracia e contra o Estado de Direito. Censuram inconstitucionalmente, bloqueiam contas bancárias ilegalmente e perseguem politicamente os opositores da política como ela é feita no país.
Não importa que as defesas sejam feitas dentro dos limites legais e constitucionais, no uso do direito da liberdade de expressão do cidadão ou mesmo da imunidade parlamentar do congressista. Se o establishment decidir que a defesa é “antidemocrática”, ela o é e passa a ser punida conforme a vontade do julgador. É o governo de homens, não o de leis.
Para reverter esta situação constrangedora, é o Congresso que deve colocar um freio nos abusadores.
A Constituição reserva mais particularmente ao Senado da República, por exemplo, a abertura de processos de impeachment de ministros do STF que cometam crimes de responsabilidade. E confere ao Parlamento o dever de zelar por suas prerrogativas constitucionais e a efetiva definição do que é democracia por meio da sua função precípua de legislar conforme a verdadeira vontade popular.
Felizmente a reação parece ter começado. A decisão da oposição e das mais importantes frentes parlamentares de obstruir todas as votações na Câmara e no Senado nesta semana é legítimo e necessário grito pela volta da normalidade institucional. Que cada um fique no seu quadrado. E os abusadores da democracia, enquadrados.
MARCEL VAN HATTEM. Cientista político, jornalista e deputado federal reeleito pelo Novo/RS