13 de julho de 2023
MARLI GONÇALVES
São verdadeiras comoções – e de emoções vívidas, fortes, emocionantes – as que infelizmente temos assistido com alguma perturbadora frequência nos últimos tempos com a partida de pessoas que, mais do que celebridades, personalidades, estrelas, se formaram em vida como símbolo, marca e representatividade de suas áreas de atuação. A transformação da tristeza da morte.
Cantos, danças, palmas, rituais, alegria e tristeza misturada em muitas horas, alguns dias até. A tentativa natural de transformar algo muito triste, perdas e despedidas, em algo maior, marcante em suas homenagens finais. Muitas vezes até divulgando melhor e espalhando o nome de quem se vai a esferas que em vida talvez não tivessem sido conhecidas ou alcançadas, todo um país, em longos noticiários e manchetes.
A notícia e os fatos seguintes à morte essa semana do dramaturgo José Celso Martinez Correa, 86 anos, após não resistir às graves queimaduras de um incêndio dramático em seu apartamento em São Paulo foi, além de chocante, exemplo de como o fim de uma vida pode ser transformada em força para a continuação de feitos, como renovação de suas lutas e, especialmente, aconchego e conforto de quem fica. Ele saiu de cena. Mas uma grande cena marcou a resistência, a existência.
Nos últimos meses não foram poucas as perdas dessa forma marcantes: Jô Soares, Gal Costa, Elza Soares, Pelé, Glória Maria, Rita Lee, e apenas para citar alguns de grandes brasileiros que se foram e momentos em que vimos milhares de pessoas acompanhando seus cortejos fúnebres, celebrados de diferentes formas e até em inusitados locais, além das ruas.
Mais: novas histórias fantásticas foram contadas sobre eles, bons feitos descobertos (os malfeitos, se houver, vão para alguma vala escura), surgem seus descendentes indiretos, pessoas por eles influenciadas, algumas lançadas também ao sucesso, inclusive.
De cada um destes nomes ficamos sabendo ainda mais, e por mais que os acompanhássemos durante anos. De muitos acompanhamos, aflitos, a agonia final em leitos de hospital; para muitos rezamos em nossas fés reservadamente pela sua recuperação, algumas que sabíamos até impossível.
De outros, a notícia chocante, repentina, que trouxe pontadas em nossas histórias, quando imediatamente lembramos de porquê gostávamos (ou mesmo, até porque não gostávamos) tanto delas. Se as encontramos. Se as conhecíamos pessoalmente. Quando suas histórias de alguma forma cruzaram com as nossas, e o que significaram.
Há décadas armei com amigos uma festa de arromba no Latino, um clube noturno do balacobaco, para homenagear um amado amigo, Luis Henrique Saia, que morreu em Paris, e que sempre foi só vida e contentamento. Não é de hoje que a transformação importante da visão da morte, das perdas, busca essa transformação que eu chamaria de apaziguadora e, até de certo alívio com o desfecho quando achávamos que aquela pessoa não merecia ter sofrido tanto em seu fim. “Quando eu morrer, não quero choro nem velas, quero uma fita amarela…”
Perdemos muita gente durante a pandemia, e que não pudemos estar lá para o aceno final. Eu perdi; e apenas aqui de meu canto pude celebrá-las. Mas, de forma muito cruel, este ano está sendo acelerado, e já estive em alguns velórios. Todos, já com essa transformação. O legado sempre maior do que o corpo que se retira desse plano. O fantástico Paulo Caruso, o incrível jornalista Palmério Dória (no velório dele teve roda de samba, cantoria boa e mais teria para celebrar sua verve, sua pena afiada, sua ironia fina, se ele estivesse na produção).
E agora mesmo, agora, esta semana, a perda da incrível Maria Luiza Kfouri, a Mana, amiga e admirada, jornalista, radialista, musicóloga, pesquisadora e conhecedora da música popular brasileira e que catalogou em seu site Discos do Brasil, um trabalho minucioso, a memória da discografia nacional. Divertida, agitada, comprometida com seu país, não poderia mesmo ter um velório triste.
Também ali, ao lado de seu corpo inerte, as manifestações musicais, instrumentais, tocadas por grandes nomes, nos fizeram lembrar, aplaudindo, lágrimas escorrendo, que a vida continua, e levando esse alento aos familiares, amigos e admiradores.
Deve ter quem ainda fique chocado com a celebração da morte em festa, além da tristeza. Não fique. Acredite. Dessa vida nada levamos, deixamos. E isso pode sim ser celebrado de corpo e alma. Para sempre.
MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).